Comunicado

Censura não é proteção

1 março 2025

Contra a manipulação da narrativa sobre crianças e jovens LGBTI nas escolas

As forças políticas conservadoras do nosso país persistem em atacar os direitos das pessoas LGBTI+, especialmente da juventude, uma camada vulnerabilizada pela sua dependência financeira na família e dificuldade de autonomização face ao contexto nacional de precariedade e crise habitacional, aos quais são desproporcionalmente expostos devido a barreiras no acesso ao emprego e à violência que enfrentam na educação[1, 2].

Os grupos parlamentares do PSD, CDS-PP e CH, defendem que o guia “O Direito a Ser nas Escolas” não tem sustento legal, citando:

  • Constituição da República Portuguesa,
  • Lei de Bases do Sistema Educativo,
  • Declaração Universal dos Direitos Humanos
  • Lei do Direito à Autodeterminação da Identidade e Expressão de Género e Proteção das Características Sexuais.

Usam cada uma destas leis e documentos com trechos estrategicamente selecionados e desprovidos de contexto para pintar uma imagem falsa de impossibilidade de fundamentação de medidas de inclusão e não-discriminação nas escolas. Vimos aqui analisar os projetos e refutá-los através de um enquadramento mais alargado e completo da legislação.

Numa campanha concertada que alega defender a segurança, bem-estar e direitos das crianças e jovens, três grupos parlamentares, nos seus respetivos Projetos de Resolução, manifestaram-se pela autoridade, responsabilidade e direito dos pais, encarregados de educação e famílias sobre a educação dos filhos, um total de 25 vezes, em detrimento da segurança e direitos das crianças e jovens, mencionados 5 vezes:

  • “direito reservado aos educandos de não verem a sua educação dissimulada por ideologias controversas à sua matriz”[3]

Porque é que a nossa existência é ideológica? Somos pessoas, não uma controvérsia.

  • “crianças a partir dos 6 anos (…) expostas à violência de terem que decidir a que instalações sanitárias e balneários devem aceder; [e] às hipóteses abusivas de escolha do género e o nome pelo qual querem ser tratados.”[4]

Autodeterminação não é violência, é liberdade. O uso do nome social diminui sintomas depressivos e ideação suicida em jovens trans[5].

  • “coloca as crianças e jovens numa situação de particular vulnerabilidade e risco”[4]
  • “devem ser integralmente respeitados os espaços de intimidade e de higiene a serem utilizados pelas crianças e jovens”[4]
  • “proteção da privacidade das crianças”[6]

Usarmos a casa de banho não coloca ninguém em risco, o alarmismo e a discriminação sim.

Os direitos das crianças e jovens são mencionados apenas mais uma vez, não para os reivindicar, mas sim numa tentativa de livrar o sistema educativo e o Estado do seu dever para com estas:

“O dever que impende sobre os estabelecimentos do sistema educativo de garantir as condições necessárias para que as crianças e jovens se sintam respeitados de acordo com a identidade de género e expressão de género manifestadas e as suas características sexuais, previsto no n.º 2 do art.º 12.º da Lei n.º 38/2018, é bem distinto do dever de garantir a promoção, junto das crianças e jovens, do exercício do direito à autodeterminação da identidade e expressão de género e do direito à proteção das características sexuais das pessoas, através da adoção de medidas no sistema educativo”[7]

Afirmar que o dever de garantir que as crianças e jovens sintam a sua identidade respeitada é diferente de garantir que exercem o direito, consagrado em lei, à sua autodeterminação, é afirmar que o Estado deve apenas proporcionar uma ilusão desse direito.

Existe uma clara fundamentação constitucional, legal e científica (consultável no final) da implementação de medidas de inclusão e não-discriminação, tais como as do guia “O Direito a Ser nas Escolas”, tornam-se vísiveis a manipulação e táticas alarmistas que estes partidos usam para desumanizar, vilanizar e tentar re-escrever a realidade.

Crianças e jovens LGBTI existem, sempre existiram e existirão.

O Governo e demais partidos políticos usam a proteção de crianças e jovens como arma de arremesso político e como manobra de distração face ao contexto nacional de precariedade e crise habitacional, assim como as verdadeiras preocupações com o sistema de ensino.

Ao prosseguir com estas recomendações, o Governo atenta contra a Constituição e ínumeras leis ao dar espaço ao abuso de autoridade por parte das famílias e à discriminação e violência em contexto escolar. Sob o pretexto da salvação da família, a segurança e a vida das crianças e jovens LGBTI são colocadas em risco.

Condenamos as tentativas de desmantelamento das aulas de Educação para a Cidadania e as ações de deputados e partidos que propuseram e aprovaram estas recomendações: PSD, CDS-PP, CH, IL e o deputado não-inscrito ex-CH.

Condenamos também os meios de comunicação social que têm vindo a disseminar e não refutar desinformação, contribuindo para estes projetos.

Desde 2005 que realizamos sessões de sensibilização sobre questões LGBTI em escolas, seguindo métodos de educação não-formal e entre pares, adaptando o conteúdo e dinamização a cada público. Já são mais de 1.500 sessões e 30.000 pessoas alcançadas, e vamos continuar a ir mais longe. Perante o clima político atual é urgente o combate à desinformação e censura.

Segundo o Relatório do Projeto Educação LGBTI 2019:

  • 79,2% assistiu a situações de discriminação contra pessoas LGBTI,
  • 86% acha importante abordar questões LGBTI em aula,
  • apenas 1,2% não considera importante.

Caso queiras marcar uma sessão na tua escola, universidade ou outro contexto, contacta-nos.

Os instrumentos de política pública em vigor que sustentam o nosso Projeto Educação LGBTI podem ser consultados em rea.pt/educacao/instrumentos

Fundamentação:

Constituição da República Portuguesa

  • Art. 26.º n.º 1. A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade (…) à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação.
  • Art. 37.º n.º 1. O direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações
  • Art. 64.º n.º 2. O direito à proteção da saúde é realizado (…) Pela criação de condições económicas, sociais, culturais e ambientais que garantam, designadamente, a proteção da infância, da juventude e da velhice, e pela melhoria sistemática das condições de vida (…)
  • Art. 69.º n.º 1. As crianças têm direito à proteção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão e contra o exercício abusivo da autoridade na família e nas demais instituições.
  • Art. 73.º n.º 2. O Estado promove a democratização da educação e as demais condições para que a educação, realizada através da escola e de outros meios formativos, contribua para a igualdade de oportunidades, a superação das desigualdades económicas, sociais e culturais, o desenvolvimento da personalidade e do espírito de tolerância, de compreensão mútua, de solidariedade e de responsabilidade, para o progresso social e para a participação democrática na vida coletiva.

Lei de Bases do Sistema Educativo

  • Art. 2.º n.º 4. O sistema educativo responde às necessidades resultantes da realidade social, contribuindo para o desenvolvimento pleno e harmonioso da personalidade dos indivíduos, incentivando a formação de cidadãos livres, responsáveis, autónomos e solidários e valorizando a dimensão humana do trabalho.
  • Art. 2.º n.º 5. A educação promove o desenvolvimento do espírito democrático e pluralista, respeitador dos outros e das suas ideias, aberto ao diálogo e à livre troca de opiniões, formando cidadãos capazes de julgarem com espírito crítico e criativo o meio social em que se integram e de se empenharem na sua transformação progressiva.

Declaração Universal dos Direitos Humanos

  • Art. 26 n.º 2. A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos do ser humano e pelas liberdades fundamentais. (…)
  • Art. 29 n.º 2. No exercício de seus direitos e liberdades, todo ser humano estará sujeito apenas às limitações determinadas pela lei, exclusivamente com o fim de assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem

Lei do Direito à Autodeterminação da Identidade e Expressão de Género e Proteção das Características Sexuais

  • Art. 2.º n.º 1. Todas as pessoas são livres e iguais em dignidade e direitos, sendo proibida qualquer discriminação, direta ou indireta, em função do exercício do direito à identidade de género e expressão de género e do direito à proteção das características sexuais.
  • Art. 2.º n.º 2. As entidades privadas cumprem a presente lei e as entidades públicas garantem o seu cumprimento e promovem, no âmbito das suas competências, as condições necessárias para o exercício efetivo do direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e do direito à proteção das características sexuais de cada pessoa.
  • Art. 3.º n.º 1. O exercício do direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género de uma pessoa é assegurado, designadamente, mediante o livre desenvolvimento da respetiva personalidade de acordo com a sua identidade e expressão de género.
  • Art. 12.º n.º 2. Os estabelecimentos do sistema educativo, independentemente da sua natureza pública ou privada, devem garantir as condições necessárias para que as crianças e jovens se sintam respeitados de acordo com a identidade de género e expressão de género manifestadas e as suas características sexuais.

Outras bases

Convergem sobre o direito à educação sexual, sendo esta dada de maneira interdisciplinar, integrada e adaptada ao nível de ensino, abordando os temas de género e sexualidade, sendo encorajada a dinamização de parcerias e atividades com entidades externas à escola.

Fontes:

  1. OECD (2019), Society at a Glance 2019: OECD Social Indicators, https://doi.org/10.1787/soc_glance-2019-en.
  2. rede ex aequo, (2020), Relatório do Projeto Educação LGBTI 2019, https://rea.pt/arquivo/relatorio-pe-2019.pdf
  3. CH, Projeto de Resolução n.º 693/XVI/1ª
  4. CH, Projeto de Resolução n.º 667/XVI/1ª
  5. Russell, S. T., Pollitt, A. M., Li, G., & Grossman, A. H. (2018). Chosen Name Use Is Linked to Reduced Depressive Symptoms, Suicidal Ideation, and Suicidal Behavior Among Transgender Youth. The Journal of adolescent health : official publication of the Society for Adolescent Medicine, 63(4), 503–505. https://doi.org/10.1016/j.jadohealth.2018.02.003
  6. CDS-PP, Projeto de resolução n.º653/VXI/1ª
  7. PSD, Projeto de Resolução n.º 658/XVI/1.ª