Sofia, 26 anos
Contar uma história de coming out não é algo simples porque não é fácil resumir em algumas linhas um processo que demora anos, e que, em algumas pessoas, suponho, nunca se completa na sua totalidade.
Antes do coming out vem o “coming in”, que tem a ver com a aceitação pessoal de ti mesma como homossexual. Recordo os tempos em que me era imensamente difícil dizer a palavra “lésbica”, quanto mais – Eu sou lésbica! Antes de dizer alto para os outros – Sou homossexual. Tens de o dizer a ti mesmo vezes e vezes sem conta, esta é a regra. Suponho que existem pessoas com uma grande liberdade interior e que aceitam a sua natureza com tanta espontaneidade que incluso deixam as outras pessoas desarmadas nos seus preconceitos. Bem, eu não sou uma dessas pessoas e para mim este foi um processo penoso e prolongado.
A primeira vez que aconteceu alguma coisa com outra rapariga tinha 17 anos. Estava apaixonada pela minha melhor amiga (típico!!!) e vivia esse sentimento num isolamento angustiado e desgastante. Quando lho contei foi um drama: eu era uma traidora e já não podia confiar em mim. Com o tempo conseguimos superá-lo e a nossa amizade foi sobrevivendo, suponho que então seria mais a palavra. Como desabafo contei toda a história a uma amiga comum, e numa noite um pouco estranha demos uns beijos, e lembro-me que foi uma experiência avassaladora, que me assustou por tudo ter sido tão bom e pelo sentimento de perca de controle. Nada mais se passou com essa rapariga e continuamos a nossa vida como se nada se tivera passado, tal era a nossa incapacidade para lidar com o assunto.
Pouco tempo depois conheci um rapaz por quem me apaixonei e estive com ele durante uns quatro anos. Esqueci completamente o que se passou, na verdade estava muito apaixonada, e apesar de lhe ter contado a história, deixei de lhe dar importância, quem sabe também porque seria o mais cómodo.
Ao fim deste tempo de namoro conheci uma rapariga por quem me apaixonei completamente. Era um sentimento muito forte, ao mesmo tempo que muito platónico, porque mais uma vez o vivia em silêncio. Ao fim de algum tempo tive que desabafar, e a primeira pessoa com quem o fiz foi precisamente com o meu namorado, que reagiu muito bem. De certa forma esta confiança ainda nos unia mais e continuamos juntos durante mais algum tempo, mas este já foi um sentimento muito sofrido porque eu não conseguia deixar de gostar dela e começava a rejeitá-lo sexualmente. Finalmente separamo-nos. Não nos separamos num dia, foi um processo gradual em que nos apoiamos mutuamente. Porque uma vez terminada a paixão ou o amor há ainda tanto que perdura e é muito duro ter de abdicar de tudo isto de um dia para o outro. Vivemo-lo na medida das nossas capacidades e sabedoria, penso que o fizemos mais ou menos bem porque não nos magoamos muito e fomos sempre tão honestos que às vezes até doía.
Mais ou menos por esta altura também, a minha mãe confrontou-me perguntando-me se eu não teria algo para lhe contar. Depois de o negar muitas vezes lá lhe disse que estava a pôr em causa a minha orientação sexual, o que era uma mentira porque já tomara por um facto a minha homossexualidade, mas sempre há maneiras mais gentis de dizer as coisas.
- Não. – este imperativo foi a sua primeira reacção, para logo seguir com um discurso pseudo educativo em que afirmava que compreendia que eu me sentisse mais identificada com as mulheres e que isso também já lhe acontecera mas que não era o mesmo que atracção sexual e falou também de opções que se tomam e coisas assim. Apesar de este perfil ser aparentemente negativo, a verdade é que a minha mãe é uma pessoa extremamente aberta e tem, sempre teve, uma atitude de tolerância e diálogo activo. Aos poucos, e há medida em que nos íamos sentindo cada vez mais confortáveis com o tema fomos falando de forma cada vez mais honesta e frontal, e agora ela entende-me muito melhor do que a minha irmã, por exemplo, que tem 29 anos, e para quem o assunto ainda é bastante problemático.
Com o passar dos tempos todos os meus amigos passaram a saber, comecei a conhecer pessoal gay e a sair por sítios gays e etc, o percurso normal. Neste momento é algo natural e intrínseco, que não exibo nem deixo de exibir, tento que seja uma assunto tanto e tão pouco importante na minha vida como todas aquelas questões que fazem parte do mais íntimo da tua personalidade. Não é uma bandeira, é um simples facto.
Penso que ainda é muito difícil ser gay em Portugal, muito mesmo, pelo menos nas cidades mais pequenas. Penso que nos ensinam a pensar de determinada maneira e que a aceitação de homossexualidade própria ainda é algo árduo de conquistar. Eu fi-lo à custa de ansiedade, angústia e sofrimento, e suponho que como eu muitos outros. É uma pena que as coisas ainda sejam assim, que tudo tenha que ser tão difícil, e que problemas que não precisam de existir existam e inflamados a um nível difícil de compreender. Assim mesmo nunca perdi um amigo ao dizer-lhe que era lésbica, nunca ninguém me atacou ou ofendeu. Mas isso sim, já muito gente me tentou convencer do contrário, tentou ignorar o assunto, demostrou verdadeiro medo perante a ideia. Enfim… Nestas alturas fazia um esforço por recordar o percurso que eu própria tive de fazer, e dava tempo às pessoas para assimilarem a ideia. Agora, confesso que já não tenho a mesma paciência (o que à sua maneira não deixa de ser uma atitude de igual falta de tolerância), enerva-me a mesquinhez e a tacanhez de espírito da nossa sociedade, o medo que tem da ambiguidade e do indefinido, do diferente, do desconhecido. Mas esta não é uma razão para deixar de acreditar e acomodarmo-nos, esta é apenas uma razão para compreendermos o quanto é cada vez mais imperativo e necessário este momento pessoal e único que é o coming out de cada um, mas que contribui no abrir caminho para um coming out colectivo, de cariz social, e que possibilite que, num futuro mais ou menos próximo, a questão “queer” seja uma questão ultrapassada.